Segurança hídrica: a "nova/velha" ameaça da má gestão das águas subterrâneas

Maria Christina Machado Publio

publiomcm@gmail.com

Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói, RJ, Brasil.

Jéssica de Freitas Delgado

jessiicafdelgado@gmail.com

Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói, RJ, Brasil.

Estefan Monteiro da Fonseca

oceano25@hotmail.com

Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói, RJ, Brasil.


A importância dos estoques subterrâneos de água é indiscutível. No entanto, ainda há escassez de estudos sobre esses reservatórios. Como resultado, as estimativas sobre a magnitude dos reservatórios globais não são consensuais, podendo variar de 1 a 60 milhões de km3 (Gleeson et al., 2016; Richey et al., 2015). No entanto, é certo que esses estoques representam mais de 90% do total de água doce disponível para os organismos vivos. A falta de informações sobre esse elemento fundamental para a vida na Terra é evidenciada na literatura científica (Bierkens et al., 2015; Clark et al., 2015; Gleeson et al., 2021; Lall et al., 2020; Sood e Smakhtin, 2015).

Apesar da restrição da circulação global das águas subterrâneas em comparação com as circulações atmosféricas globais, as águas subterrâneas constituem o maior reservatório de água doce líquida no ciclo hidrológico, podendo ser transferidas por grandes distâncias em escalas continentais ao longo de períodos que variam de dias a centenas de anos (Condon et al., 2021).

A grande disponibilidade de reservas não torna a água subterrânea a primeira fonte de exploração por razões logísticas e econômicas. Apesar disso, o aproveitamento da água subterrânea para abastecimento doméstico, agrícola e industrial tem visto um crescimento acentuado em todo o mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, são perfurados centenas de milhares de poços a cada ano, impulsionados principalmente pela irrigação agrícola. Na Índia, cerca de 31 milhões de hectares são irrigados. Em alguns países, mais da metade das terras irrigadas são abastecidas com água subterrânea, como o Irã, com 58%, e a Argélia, com 67%. A Líbia depende exclusivamente dessa fonte hídrica para a irrigação (ABAS, 2001). Além disso, países como Arábia Saudita, Dinamarca e Malta são abastecidos exclusivamente por água subterrânea. Em outros países, como Áustria, Alemanha, Bélgica, França, Hungria, Itália, Holanda, Marrocos, Rússia e Suíça, estima-se que as reservas subterrâneas atendam a mais de 70% da demanda por água doce.

Por fim, a maior dificuldade na difusão geológica e consequente renovação da água nos reservatórios torna o compartimento subterrâneo de água um sistema extremamente vulnerável a potenciais contaminações provenientes da ação humana (Fraga et al., 2013). A urbanização, as práticas agrícolas, as atividades industriais e as mudanças climáticas representam ameaças significativas à qualidade das águas subterrâneas, podendo resultar na contaminação dessas reservas. Poluentes como metais tóxicos, hidrocarbonetos, pesticidas, nanopartículas, microplásticos e outros contaminantes emergentes representam uma ameaça não apenas para a saúde humana, mas também para os ecossistemas e para o desenvolvimento socioeconômico sustentável (Li 2020; Li e Wu, 2019).

Por outro lado, a cada dia surgem novos contaminantes, evidenciando o atraso e o persistente desconhecimento da comunidade científica em relação a todos os impactos gerados pelas atividades antropogênicas. Esse desconhecimento não se limita apenas à existência de compostos poluentes (como o recente e emergente desafio dos microplásticos), mas também se manifesta na superficialidade da compreensão da dinâmica de circulação biogeoquímica e dos potenciais impactos sobre os diversos componentes que compõem a ecologia terrestre. No que diz respeito aos microplásticos, diversos estudos já comprovam sua capacidade de alcançar sistemas remotos, como cadeias montanhosas isoladas (Napper et al., 2020; Pastorino et al., 2021; Cabrera et al., 2022), bem como reservatórios subterrâneos de água (Singh e Khagwat, 2022).

Cerca de um terço da população humana depende da água subterrânea para sua sobrevivência (International Association of Hydrogeologists, 2020), tornando este recurso essencial para as populações que residem em regiões áridas e semiáridas, onde a disponibilidade de água superficial e a precipitação são limitadas (Li et al., 2017). Assegurar um fornecimento seguro e sustentável de água subterrânea para consumo é um dos impulsionadores cruciais do desenvolvimento sustentável de uma nação. A pergunta que permanece é a seguinte: Ainda há tempo para compreender e subsequentemente tomar medidas de gestão para remediar os problemas que já estão em curso?

REFERENCIAS

Águas Subterrânea - Abas (2001), Água Subterrânea – curiosidades, s.l., Abas, disponível em: http://www.abas.org.br/curioso

Bierkens, M.F.P. (2015), “Global hydrology 2015: State, trends, and directions”, Water Resources Research, vol. 51, no. 7, pp. 4923–4947, DOI: 10.1002/2015wr017173

Cabrera, M., Moulatlet, G.M., Valencia, B.G., Maisincho, L., Rodríguez-Barroso, R., Albendín, G., Sakali, A., Lucas-Solis, O., Conicelli, B. & Capparelli, M.V. (2022), “Microplastics in a tropical Andean Glacier: A transportation process across the Amazon basin?”, Science of The Total Environment, vol. 805, p. 150334, DOI: 10.1016/j.scitotenv.2021.150334

Clark, M.P., Fan, Y., Lawrence, D. M., Adam, J. C., Bolster, D., Gochis, D. J., Hooper, R.P., Kumar, M., Leung, R., Mackay, D.S., Maxwell, R.M., Shen, C., Swenson, S.C & Zeng, X. (2015), “Improving the representation of hydrologic processes in Earth System Models”, Water Resources Research, vol. 51, no. 8, pp. 5929–5956, DOI: 10.1002/2015WR017096

Condon, L.E., Kollet, S., Bierkens, M.F.P., Fogg, G. E., Maxwell, R.M., Hill, M.C., Fransen, H.J.H., Verhoef, A., Van Loon, A.F., Sulis, M. & Abesser, C. (2021), Global groundwater modeling and monitoring: Opportunities and challenges. Water Resources Research, vol. 57, p. e2020WR029500, DOI: 10.1029/2020WR029500

Fraga, C. M., Fernandes, L. F. S., Pacheco, F. A. L., Reis, C., & Moura, J. P. (2013), “Exploratory assessment of groundwater vulnerability to pollution in the Sordo River Basin, Northeast of Portugal”, Rem: Revista Escola de Minas, vol. 66, no. 1, pp. 49–58, disponível em: 10.1590/S0370-44672013000100007

Gleeson, T., Befus, K. M., Jasechko, S., Luijendijk, E. & Cardenas, M.B. (2016), “The global volume and distribution of modern groundwater”, Nature Geoscience, vol. 9, no. 2, pp. 161–167, DOI: 10.1038/ngeo2590

International Association of Hydrogeologists (2020), Groundwater— more about the hidden resource, IAH, s.l., disponível em: https://iah.org/education/general-public/groundwater-hidden-resource (acesso em: 13 Nov 2020)

Lall, U., Josset, L., & Russo, T. (2020), “A snapshot of the world's groundwater challenges”, Annual Review of Environment and Resources, vol. 45, no. 1, pp. 171–194, DOI: 10.1146/annurev-environ-102017-025800

Li, P. & Wu, J. (2019), “Sustainable living with risks: meeting the challenges”, Human and Ecological Risk Assessment, vol. 25, pp. 1–10.

Li, P. (2020), “To make the water safer”, Expo Health, vol. 12, pp. 337–342.

Li, P., Tian, R., Xue, C. & Wu, J. (2017), “Progress, opportunities and key fields for groundwater quality research under the impacts of human activities in China with a special focus on western China”, Environmental Sciences and Pollution Research, vol. 24, pp. 13224–13234

Napper IE, Davies, B.F., Clifford, H., Elvin, S., Koldewey, H.J., Mayewski, P.A., Miner, K.R., Potocki, M., Elmore, A.C., Gajurel, A.P. & Thompson, R.C., (2020), “Reaching new heights in plastic pollution—preliminary findings of microplastics on Mount Everest”, One Earth, vol, 3, no. 5, pp. 621-630, DOI: 10.1016/j.oneear.2020.10.020

Pastorino, P., Pizzul, E., Bertoli, M., Anselmi, S., Kušće, M., Menconi, V., Prearo, M. & Renzi, M. (2021), “First insights into plastic and microplastic occurrence in biotic and abiotic compartments, and snow from a high-mountain lake (Carnic Alps)”, Chemosphere, vol. 265, p. 129121, DOI: 10.1016/j.chemosphere.2020.129121

Richey, A.S., Thomas, B.F., Lo, M.H., Reager, J.T., Famiglietti, J.S., Voss, K., Swenson, S., Rodell, M. (2015), “Quantifying renewable groundwater stress with GRACE”, Water Resources Research, vol. 51, no. 7, p. 5217–5238, DOI: 10.1002/2015wr017349

Singh, S. & Bhagwat, A., (2022), “Microplastics: A potential threat to groundwater resources”, Groundwater for Sustainable Development, vol. 19, p. 100852, DOI: 10.1016/j.gsd.2022.100852

Sood, A., & Smakhtin, V. (2015), “Global hydrological models: A review”, Hydrological Sciences Journal, vol. 60, no. 4, pp. 549–565, DOI: 10.1080/02626667.2014.950580


Recebido: 14 ago. 2023

Aprovado: 14 ago. 2023

DOI: 10.20985/1980-5160.2023.v18n2.1892

Como citar: Publio, M.C.M., Delgado, J.F., Fonseca, E.M. (2023). Segurança hídrica: a "nova/velha" ameaça da má gestão das águas subterrâneas. Revista S&G 18, 2. https://revistasg.emnuvens.com.br/sg/article/view/1892