Inteligência artificial como suporte a sistemas de controle e contabilidade gerencial: uma análise em empresas do transporte por aplicativo

Ewerton Alex Avelar

ewertonaavelar@gmail.com

Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil.

Ricardo Vinícius Dias Jordão

jordaoconsultor@yahoo.com.br

School of Knowledge Economy and Management – SKEMA, Brasil.

Gabriela Maria Couto Ferreira

mcouto.gabriela@gmail.com

Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil.

Beatriz Najela Ekaterina Ribeiro da Silva

beatriznajela@gmail.com

Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil.


RESUMO

Destaques: Em um ambiente de economia compartilhada, a forma de exercício do controle pelas empresas pode mudar radicalmente. Nesse contexto, destaca-se o crescimento do emprego de decisões baseadas em algoritmos. Em especial, é cada vez mais popular o uso da inteligência artificial (IA) por parte de empresas para controlar o trabalho dos colaboradores. Tais mudanças tecnológicas influenciam significativamente os sistemas de controle e contabilidade gerencial (SCCG). Objetivo: Analisar o papel da IA como suporte às diferentes ferramentas do SCCG da 99 Tecnologia Ltda (99TL) e da UBER no Brasil, tendo como base o modelo proposto por Malmi e Brown (2008). Desenho/Metodologia/Abordagem: A pesquisa se caracteriza como qualitativa, exploratória e documental. Os dados (visuais e verbais) foram coletados por meio de documentos das empresas divulgados publicamente e de relatos de motoristas parceiros. Esses dados foram tratados e analisados com base na análise de conteúdo, sendo que foram usadas como principais categorias aquelas baseadas nos pacotes de controles dos SCCG propostos por Malmi e Brown (2008). Resultados: Constatou-se que várias ferramentas de controle empregadas pela 99TL e pela UBER podem ser categorizadas de acordo com os pacotes de controle de Malmi e Brown (2008). Ademais, verificam-se muitas similaridades entre as empresas em relação às ferramentas empregadas em cada pacote do SCCG para incentivar os motoristas. No que se relaciona ao papel da IA, há evidências de que ela transpassa praticamente todos os pacotes de controle apresentados, em especial, os controles cibernéticos, de prêmios e compensações e administrativos. Limitações da investigação: (a) O uso de uma amostra não probabilística dos motoristas; (b) o fato de que alguns motoristas têm a visão de sua localidade de atuação, podendo confundir situações regionais com nacionais; e (c) o acesso a alguns controles via dados secundários é limitado (em especial, no que se refere a controles financeiros). Implicações práticas: A pesquisa demonstra diversas evidências do papel central da IA como suporte ao SCCG das empresas de transporte por aplicativo. Ademais, destaca-se como os motoristas compreendem os incentivos dos SCCG das empresas, reagindo a eles. Originalidade/valor: (i) Enfocou-se a inter-relação entre o SCCG e a economia compartilhada, algo raro tanto nacional quanto internacionalmente; (ii) demonstrou-se que é possível a aplicação do modelo de Malmi e Brown (2008) em empresas com modelos de negócios diferenciados como o transporte por aplicativo; (iii) abordou-se o papel cada vez mais central da IA nos sistemas de controle gerencial; e (iv) foi proposta uma nova abordagem metodológica de pesquisa na área, empregando dados baseados em relatos públicos.

Palavras-chaves: Inteligência Artificial (IA); Sistemas de Controle e Contabilidade Gerencial (SCCG); Transporte por Aplicativo.


INTRODUÇÃO

Na última década, observou-se uma emergência da economia compartilhada (EC). Esta pode ser compreendida como uma nova forma de distribuição de recursos que afeta mercados tradicionais, cidades, indivíduos, assim como questiona marcos regulatórios e normas sociais (Zvolska et al., 2019). Segundo Sutherland e Jarrahi (2019), essa economia é essencialmente dependente dos avanços da tecnologia da informação (TI).

Dentre as inovações de TI que dão suporte à EC, destaca-se a inteligência artificial (IA). Apesar de não ser um conceito novo, Ertel (2017) afirma que recentemente as suas aplicações passaram a ser amplamente empregadas no contexto social. Hughes et al. (2019) ressaltam que um dos usos da IA no ambiente corporativo da EC se refere ao controle das ações dos funcionários para fins de se atingir os objetivos empresariais.

Salienta-se que esse tipo de controle usualmente está relacionado aos sistemas de controle e contabilidade gerencial (SCCG), que podem ser compreendidos como os processos pelos quais os gestores influenciam os outros membros da organização a implementarem as estratégias corporativas (Anthony e Govindarajan, 2008). Ressalta-se que, dentre os modelos mais usados para se analisar os SCCG de empresas, está o proposto por Malmi e Brown (2008), que consideram tal sistema como um conjunto de pacotes interdependentes.

Cheng e Foley (2019) realçam que, tradicionalmente, os gestores coordenam as atividades dos subordinados nas empresas com base nos SCCG. Todavia, conforme Leoni e Parker (2019), a forma de controle muda drasticamente em um ambiente de EC. Neste caso, as decisões via algoritmos se tornam cada vez mais relevantes (Cheng e Foley, 2019). Um setor da EC que veem empregando a IA é o setor de transportes. Hughes et al. (2019) afirmam que essa inteligência já é empregada em empresas de transporte por aplicativos, de forma a controlar constantemente o trabalho dos motoristas parceiros.

Diante do exposto, o estudo apresentado neste artigo visou analisar o papel da IA como suporte às diferentes ferramentas do SCCG da 99 Tecnologia Ltda (99TL) e da UBER no Brasil, tendo como base o modelo proposto por Malmi e Brown (2008). Nesse sentido, foram propostos os seguintes objetivos específicos: (a) identificar as ferramentas de controle gerencial empregadas pelas empresas, de acordo com o modelo proposto por Malmi e Brown (2008); (b) compreender o papel da IA em cada um dos SCCG empregados por ambas as empresas; e (c) identificar o efeito desses sistemas (e, consequentemente da IA) sob a perspectiva dos motoristas do aplicativo.

A pesquisa desenvolvida é justificada sob várias perspectivas: (i) emergência recente da EC (Sutherland e Jarrahi, 2018); (ii) escassez de estudos sobre SCCG na EC no Brasil e no exterior (Leoni e Parker, 2019); (iii) o emprego do modelo de análise de SCCG de Malmi e Brown (2008), uma referência muito recomendada internacionalmente (Svensson e Funck, 2019); (iv) a importância de se compreender o papel da IA no controle gerencial; e (v) o papel socioeconômico das empresas de transporte por aplicativo, que influenciam centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo (Securities and Exchange Commission – SEC, 2019; UBER, 2020a).

REVISÃO DE LITERATURA

Segundo Silveira et al. (2017), a EC pode ser entendida como um sistema socioeconômico construído em torno do compartilhamento de recursos humanos e físicos, incluindo a criação, a produção, a distribuição, o comércio e o consumo compartilhado de bens e serviços. Sutherland e Jarrahi (2018) complementam que essa economia é bastante dependente da tecnologia e de transações digitais.

Cheng e Foley (2019) reforçam que esses avanços da EC via tecnologia estão muito relacionados à gestão por meio de algoritmos, que permite a capacidade de processamento de inúmeras transações com baixo nível de recursos. Neste caso, destaca-se o papel da IA. Esta pode ser definida como a habilidade de um sistema computacional monitorar, avaliar e responder ao ambiente (Hughes et al., 2019). No contexto da EC, Hughes et al. (2019) reforçam o papel da IA para monitorar e tomar decisões em relação aos funcionários. Segundo Cheng e Foley (2019), devido à escala da força de trabalho na EC, decisões baseadas em algoritmos têm crescido e estão sendo adotadas pelas organizações para tornar o trabalho mais eficiente via automação.

Hughes et al. (2019) ressaltam que a IA pode ser empregada para controlar os funcionários de duas formas: (a) controle de comportamento – direcionando e monitorando as atividades dos funcionários, de forma a garantir que o trabalho está de acordo com padrões previamente estipulados; e (b) controle de resultados – mensurando o desempenho do funcionário após o desempenho de uma tarefa. Apesar dessa tendência de controle, Brougham e Haar (2019) enfatizam também a tendência a problemas psicológicos (como a depressão) para os trabalhadores que são afetados por esse tipo de inteligência.

Usualmente, esses controles efetuados pela IA e descritos por Leoni e Parker (2019), Cheng e Foley (2019) e Hughes et al. (2019) são caracterizados na literatura como SCCG. Trata-se de processos pelos quais os gestores influenciam os outros membros da organização, ajudando a implementar a estratégia corporativa para que as decisões dos colaboradores sejam consistentes com os objetivos organizacionais (Anthony e Govindarajan, 2008).

Malmi e Brown (2008) conceituam amplamente os SCCG como regras, práticas, valores e outras atividades que são geridas no sentido de direcionar o comportamento dos funcionários. No intuito de aprimorar as discussões sobre SCCG na literatura, esses autores propuseram uma forma de análise desse sistema como “pacotes”, detalhados no Quadro 1. Svensson e Funck (2019) realçam que tal modelo oferece uma visão mais holística do controle gerencial nas organizações, discutindo “pacotes” e não sistemas individualizados.

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Dentre as plataformas tecnológicas mais relacionadas à EC, e que utilizam a IA para dar suporte ao SCCG, encontram-se aquelas ligadas ao transporte por aplicativo (Hughes et al., 2019). Dentre tais empresas, duas se destacam na atuação no Brasil nos últimos anos: a 99TL e a UBER. Esta última, é uma empresa de alcance mundial, que atua em mais de 900 cidades espalhadas em 85 países, sendo que o Brasil é o segundo país com maior número de cidades atendidas (124) (UBER, 2020a). Já no que se refere à 99TL, empresa fundada por brasileiros, seus números indicam que a plataforma conecta 18 milhões de passageiros a 600 mil motoristas e está presente em mil cidades (99TL, 2020a).

Considerando o exposto por Hughes et al. (2019), Cheng e Foley (2019), Leoni e Parker (2019), os milhões de usuários apresentados pelas empresas (UBER, 2020a; 99TL, 2020a) e a relevância estratégica da IA no modelo de negócios da UBER (SEC, 2019), considera-se, neste artigo, que essa inteligência é amplamente empregada no controle dos motoristas dessas empresas, dadas tais evidências.

METODOLOGIA

Esta pesquisa caracteriza-se como qualitativa, exploratória e documental (SAMPIERI et al., 2006). Foi utilizado o método de amostragem não probabilística por conveniência (Cooper e Schindler, 2003). A base de dados utilizada para a pesquisa foi composta por dados secundários: verbais e visuais (Flick, 2004). Os dados visuais foram obtidos por meio de documentos da 99TL e da UBER divulgados publicamente, tais como: Formulário S-1 da SEC, relatórios de administração e financeiros, Termos e Condições, Política de Privacidade e sites oficiais das empresas no Brasil. Também foram coletados dados verbais e visuais dos motoristas vinculados às referidas plataformas.

Diante da impossibilidade de obter dados de todos os motoristas que utilizam as plataformas da 99TL e UBER, foram selecionados aqueles que são influenciadores digitais, mais especificamente os produtores de conteúdo com maior relevância no YouTube, plataforma de vídeos mundial. Salienta-se que a seleção de amostra por meio das mídias geradas por influenciadores digitais tem sido utilizada com frequência para pesquisas em ciências sociais, tanto em estudos nacionais como em internacionais por se tratar de uma importante fonte de evidências (Amaral et al., 2018; Eldik et al., 2019). Os influenciadores foram selecionados com base no filtro “Relevância” do YouTube. Para selecionar a amostra de motoristas foram inseridas as seguintes palavras-chave: “UBER”, “motorista de aplicativo”, “99TL”, “99 Tecnologia Ltda.”, e “transporte por aplicativo”. Posteriormente, foram selecionados os canais de influenciadores que possuíam a maior quantidade de seguidores. Os canais dos motoristas selecionados estão listados na Tabela 1.

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Os motoristas selecionados possuem dezenas ou centenas de milhares de seguidores, o que demonstra o poder de alcance e de influência que eles possuem sobre os motoristas que consomem os seus conteúdos. Destaca-se que os motoristas selecionados atuam (ou atuaram durante determinado período) como motoristas parceiros da 99TL e/ou UBER e conhecem a parte operacional das plataformas, assim, eles apresentam um conjunto variado de críticas sobre os SCCG da plataforma. Ressalta-se que alguns motoristas são patrocinados em determinados vídeos, o que pode trazer um viés comercial à parte dos temas abordados.

Os dados extraídos dos canais dos influenciadores citados no Quadro 2 se referem ao ano de 2019, e foram coletados no primeiro trimestre de 2020. Ressalta-se que todos os vídeos do ano de 2019 foram assistidos, sendo codificados e registrados apenas aqueles relacionados com as ferramentas de SCCG das empresas estudadas. Em seguida, os dados foram tratados e analisados por meio da análise de conteúdo, conforme proposto por Bardin (2016). Os dados obtidos foram categorizados conforme os pacotes de SCCG propostos por Malmi e Brown (2008). Além disso, foi utilizada a triangulação das diferentes fontes de evidências para garantir a confiabilidade dos dados.

RESULTADOS

SCCG da 99TL

A empresa 99TL foi fundada em 2012 por brasileiros, sendo adquirida pela Didi Chuxing (“DiDi”) seis anos depois. Salienta-se que a DiDi visa ser a líder global na revolução do transporte e da tecnologia automobilística (DIDI, 2020). Com relação aos motoristas, o Termos de Uso Motorista, deixa claro que a relação entre a 99TL e o motorista é de intermediação de corridas e facilitação de pagamento, por meio da utilização do software disponibilizado pela empresa, inexistindo vínculo de natureza societária, empregatícia e econômica, sendo o motorista livre para aceitar ou recusar as corridas a partir do aplicativo (99TL, 2020b). Ademais, a empresa se exime da responsabilidade em caso de danos ou prejuízos causados pelos passageiros (99TL, 2020c).

Dois controles cibernéticos se destacam no que se refere ao SCCG da 99TL: (i) avaliação por meio de estrelas (feedback); e (ii) as taxas de aceitação. A avaliação pode variar entre uma (péssima avaliação) e cinco (ótima avaliação) estrelas. Depois de cada viagem realizada, tanto passageiros quanto motoristas são convidados a se avaliarem mutuamente. O cálculo das notas dos motoristas, considera a média das últimas 100 notas recebidas, registradas de forma cronológica. As avaliações são importantes para os motoristas e eles entendem que as notas possuem uma grande importância para acesso aos benefícios e para assegurar a continuidade deles na plataforma. Segundo a empresa, os motoristas podem acessar suas avaliações e receber dicas para melhorar (99TL, 2020d). Em 2019, motoristas informaram que a 99TL implementou a métrica de taxa de aceitação. Essas taxas interferem em seu desempenho.

Como forma de controle de prêmios e compensação, em sua “Política de Privacidade”, a 99TL declara que utilizará os dados dos motoristas para identificar e personalizar a sua experiência e utilização do aplicativo e dos serviços da empresa, inclusive para fornecimento de promoções e incentivos financeiros (99TL, 2018). Em conformidade com o documento, diversos motoristas relatam que a aplicação das promoções da plataforma é de acordo com o perfil do motorista (número de viagens, taxa de cancelamento, avaliação dos passageiros, número de corridas, etc.). A 99TL também realiza campanhas com promoções exclusivas em datas comemorativas e de maior demanda, como Natal, Ano Novo e Carnaval, de acordo com vários motoristas.

Sobre a tarifa paga pela empresa pelas corridas, o Motorista I fez questão de mencionar que elas seriam baixas em relação aos gastos demandados pela atividade. Salienta-se que, em 2019, diversos motoristas relataram que houve uma alteração da forma de se calcular a tarifa, criando uma forte resistência entre eles. Ademais, a empresa trabalha com a tarifa dinâmica, quando o preço das viagens são majorados para equilibrar oferta e demanda por automóveis. Porém, o motorista C ressalta que, nem sempre, seriam pessoas realmente chamando por viagens que inflacionariam a demanda mas, sim, pessoas “testando” os preços.

Já no que se refere aos controles administrativos, a 99TL estabelece critérios mínimos aos quais os veículos devem atender para serem inscritos no sistema, sendo que as exigências comuns a todas as cidades são de que o veículo possua 4 portas e ar condicionado. Já o ano mínimo de fabricação aceito pode variar de acordo com a cidade em que o motorista deseja trabalhar. Ainda neste tipo de controle, é relevante informar que a empresa monitora a troca de mensagens dos motoristas no aplicativo, muito possivelmente por meio de sua IA, de acordo com suas políticas de privacidade, e que podem influenciar a permanência na plataforma (99TL, 2018).

No que tange ao controle cultural, alguns motoristas relatam os benefícios do clube 99 Prime, um clube de vantagens exclusivas. Salienta-se, ainda, o programa Somos 99, citado pelo motorista G. Segundo a empresa, são oferecidas cinco categorias de vantagens (Parceiro, Prata, Ouro, Rubi e Diamante), sendo que esse programa é organizado em quatro frentes: Parcerias, Capacitação, Eventos e Vantagens Exclusivas (99TL, 2020e). Ainda conforme a empresa, são apresentadas metas semanais e mensais de viagens para que o motorista consiga atingir as diferentes categorias, de forma a incentivar o engajamento dos motoristas (99TL, 2020e).

SCCG da UBER

Parte do planejamento da UBER se tornou mais claro a partir da abertura do capital (initial public offering – IPO) da empresa nos EUA em 2019. Esse planejamento partiria da missão da UBER que, segundo o presidente da empresa, é criar “oportunidades ao colocar o mundo em movimento” (SEC, 2019; UBER, 2020b). É importante destacar que o presidente da empresa enfatiza o papel essencial da tecnologia para a organização (SEC, 2019). A empresa também realça o papel primordial de sua IA, que consegue rodar centenas de modelos com base nos seus dados e direcionar serviços aos clientes com qualidade e segurança (SEC, 2019). Assim, pode-se dizer que o emprego intensivo da IA da UBER é parte fundamental de sua estratégia, sendo usada como parte do SCCG para controle dos colaboradores.

Apesar de serem citados em aspectos essenciais pela UBER (SEC, 2019), muitos motoristas já criticaram a relação que a empresa mantém com eles. Contrariando o afirmado pelos motoristas, a UBER destaca o papel crítico que esses agentes têm em seu desenvolvimento, apresentando o maior engajamento como uma de suas estratégias de crescimento (SEC, 2019). O distanciamento entre a empresa e os motoristas é reforçado nos Termos de Uso da primeira, que realçam a não relação trabalhista existente entre a empresa e os motoristas (UBER, 2020c). Salienta-se que a UBER faz questão de ressaltar que essa relação não trabalhista é considerada um dos principais riscos ao modelo de negócio em diferentes localidades do mundo (SEC, 2019). Alguns motoristas também ressaltam que se envolvem em condições perigosas ao excerem o trabalho.

Diversos elementos do controle cibernético podem ser discutidos no que se refere ao SCCG da UBER, porém, dois se destacam: (i) a avaliação por meio de estrelas (feedback); e (ii) as taxas de aceitação e cancelamento. Assim como no caso da 99TL, a avaliação varia entre uma e cinco estrelas, porém, no caso da UBER, considera-se uma média ponderada das últimas 500 viagens. Já no que se refere às taxas, segundo a UBER (2019), as taxas de aceitação se referem ao número de viagens que o motorista aceita em relação àquelas propostas pelo aplicativo nos últimos 30 dias (a empresa indiretamente recomenda uma taxa acima de 90%). Já a taxa de cancelamento se refere à proporção de viagens canceladas em relação às viagnes aceitas pelos motoristas, sendo recomendada indiretamente uma taxa inferior a 10% (UBER, 2019).

Muitos controles de prêmio e compensação estão intimamente ligados aos controles cibernéticos. Ademais, há muitas promoções contextuais especialmente em datas e períodos comemorativos, tal como no caso da 99TL. Outra promoção relatada pelos motoristas, refere-se ao uso de premiações em viagens consecutivas. Uma premiação muito citada foi a que ocorreu pouco antes do IPO da UBER, na qual vários prêmios foram pagos a eles, com base no número de viagens realizadas pelos mesmos.

No que se refere à tarifa paga pela UBER pelos serviços prestados, os motoristas ressaltam que ela pode ser dividida em duas partes: uma fixa e outra variável. A tarifa fixa é o valor base da viagem, e a variável depende tanto do tempo (em minutos) que o motorista demora para realizar a viagem quanto dos quilômetros percorridos. Segundo os profissionais, a variável é mais influenciada pelos quilômetros do que pelos minutos, ou seja, há um incentivo para que o motorista se mantenha em movimento. Muitos deles enfatizaram que a tarifa atualmente paga pela UBER é baixa e não é reajustada. Por fim, todos os motoristas analisados ressaltam a chamada “tarifa dinâmica” (preço dinâmico), usada pela UBER para equilibrar a oferta de automóveis à demanda dos passageiros. Quando a empresa estima uma grande demanda em uma dada região, a IA do aplicativo aumenta o valor da tarifa de viagens na localidade, de forma a incentivar os motoristas a se deslocarem para lá. Alguns deles recomendam o uso do aplicativo REBU para aproveitar melhor tais tarifas majoradas.

Em geral, os automóveis são o foco dos controles administrativos da UBER. A empresa utiliza os automóveis como uma das bases para segregar seus motoristas de acordo com diferentes níveis de categoria (em geral, quanto maior o nível, maior a tarifa paga aos motoristas). Por fim, é muito relevante destacar que a empresa pode monitorar a troca de mensagens de motoristas por meio do aplicativo (UBER, 2020d; 2020e), podendo empregar sua IA.

Sobre o controle cultural por parte da UBER, é importante salientar o papel do “Clube 6 Estrelas” e do “UBER Pro”. Segundo a UBER (2018), o Clube 6 Estrelas foi criado como uma forma de valorizar motoristas parceiros que se destacam dentro da plataforma, sendo presente em algumas cidades brasileiras. Já o UBER Pro é um programa mais recente no Brasil e disponível em algumas localidades. Segundo a UBER (2020f), este programa tem diferentes categorias, quais sejam: Azul, Ouro, Platina e Diamante. A empresa ainda ressalta que a categoria de cada membro é dada, dentre outros fatores, por metas em controles cibernéticos, como as taxas de aceitação e a avaliação média dos usuários (mínimo de 4,85).

Análise geral

A partir da apresentação dos resultados, observa-se diversas similaridades entre os SCCG empregados por ambas as empresas abordadas neste artigo. O Quadro 2 apresenta um resumo dos achados em cada um dos sistemas analisados de acordo com os diferentes pacotes propostos por Malmi e Brown (2008).

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Com base na análise do Quadro 2, observa-se que várias ferramentas de controle empregadas pelas empresas podem ser categorizadas de acordo com os pacotes de controles de Malmi e Brown (2008). Ademais, verificam-se muitas similaridades em relação às ferramentas empregadas em cada pacote do SCCG para incentivar os motoristas. Por serem empresas que concorrem no mesmo mercado, um certo nível de isomorfismo mimético seria realmente esperado. Nesse sentido, também há muitas similaridades das reclamações de motoristas em relação aos SCCG de ambas as empresas, tais como as situações de perigo às quais são expostos e o baixo valor das tarifas.

No que se relaciona à IA, verifica-se que o seu papel transpassa praticamente todos os pacotes de controle apresentados, reforçando o importante papel dos algoritmos no controle dos motoristas, conforme enfatizam Cheng e Foley (2019). A UBER, especificamente, deixa claro o seu papel no planejamento da empresa (SEC, 2019). Ademais, é evidenciado que a IA das empresas utiliza dados dos controles cibernéticos para possibilitar o acesso aos benefícios dos demais pacotes de controle empregados. Nesse caso, destaca-se, principalmente, a tarifa dinâmica, que é ajustada recorrentemente de forma a fornecer diferentes incentivos aos diversos motoristas, para equilibrar a oferta de automóveis à demanda, garantindo o serviço aos usuários. É uma funcionalidade que não seria passível de ser implementada sem o suporte de uma IA.

Ademais, essa inteligência também apresenta um papel muito relevante nos controles administrativos, considerando que é esperado que ela seja responsável por avaliar as mensagens trocadas entre os motoristas e os usuários, de forma a garantir uma relação dentro do esperado pelas empresas. Considerando tanto os controles cibernéticos quanto os de prêmio e compensão, verifica-se o emprego simultâneo das duas formas de controle via IA enfatizados por Hughes et al. (2019): o de comportamento e o de desempenho. Salienta-se que, apenas no caso do pacote de controle cultural, o papel da IA não parece ser tão destacado, uma vez que as métricas empregadas para se acessar cada nível não parece depender de decisões tão complexas, mas, apenas de regras lógicas bem definidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo apresentado neste artigo visou analisar o papel da IA como suporte às diferentes ferramentas do SCCG da 99TL e da UBER no Brasil, tendo como base o modelo proposto por Malmi e Brown (2008). Verificou-se que as ferramentas empregadas no SCCG por ambas as empresas analisadas podem ser classificadas com base nos pacotes de controle do modelo proposto por aqueles autores.

Ademais, verificou-se diversas evidências do papel central da à IA como suporte ao SCCG dessas empresas. O papel dessa inteligência parece transpassar praticamente as ferramentas de todos os pacotes de controles identificados (com exceção do controle cultural). O controle exercido sobres os motoristas nestes casos, equivale tanto ao controle comportamental quanto ao de desempenho. Ainda, salienta-se que os motoristas demonstram compreender os incentivos dos SCCG das empresas, reagindo aos incentivos. Neste caso, destaca-se a referência ao aplicativo REBU no caso dos motoristas da UBER. Há também questionamentos de seu valor frente às empresas e das tarifas pagas.

Esta pesquisa apresenta diversas contribuições à literatura sobre SCCG e IA: (i) ela enfoca a inter-relação entre esse sistema e a EC, algo raro tanto nacional quanto internacionalmente, conforme Leoni e Parker (2019); (ii) demonstra que é possível a aplicação do modelo de Malmi e Brown (2008) em empresas com modelos de negócios diferenciados como o transporte por aplicativo, ratificando a importância desse modelo, bastante reconhecido internacionalmente (Svensson e Funck, 2019); (iii) aborda o papel cada vez mais central da IA nos sistemas de controle gerencial, tal como enfatizado por Hughes et al. (2019); e (iv) propõe uma nova abordagem metodológica de pesquisa na área, empregando dados baseados em relatos públicos.

Apesar dessas contribuições, a pesquisa apresentou algumas limitações. Inicialmente, tem-se a amostra não probabilística dos motoristas, que enfocou seu o engajamento na produção de conteúdo. Salienta-se, ainda, que alguns motoristas analisados são patrocinados em alguns vídeos, o que pode influenciar, pelo menos em parte, seu posicionamento sobre alguns tópicos. Ademais, cada um deles tem a visão de sua localidade de atuação e pode confundir regras regionais com nacionais. Por fim, o acesso a alguns controles via dados secundários é limitado, especialmente no que se refere aos controles que usem métricas financeiras.

Pesquisas futuras poderiam: (a) explorar a relação do SCCG com os motoristas de outras empresas de transporte por aplicativo que atuam no país, tal como a Cabify; (b) comparar os controles empregados pela UBER sobre motoristas de diferentes países, uma vez que se trata de uma empresa multinacional; (c) coletar dados primários que poderiam elucidar melhor alguns controles não abordados neste trabalho; e (d) analisar outras modalidades da EC, como a entrega via aplicativos (UBER Eats, iFood, Rappi etc.).


REFERÊNCIAS

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Recebido: 19 ago. 2020

Aprovado: 09 mar. 2021

DOI: 10.20985/1980-5160.2021.v16n1.1668

Como citar: Avelar, E.A., Jordão, R.V.D., Ferreira, G.M.C., Silva, B.N.E.R. (2021). Inteligência artificial como suporte a sistemas de controle e contabilidade gerencial: uma análise em empresas do transporte por aplicativo. Revista S&G 16, 1, 57-64. https://revistasg.emnuvens.com.br/sg/article/view/1668