Estudo do ciclo de vida do ciclone subtropical Arani ocorrido no Atlântico Sul em março de 2011 através das reanálises ERA-Interim e CFSR

Ana Cristina Pinto de Almeida Palmeira

anactn@gmail.com

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

Rodrigo de Souza Barreto Mathias

rodrigowind.meteoro@gmail.com

Marinha do Brasil, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.


RESUMO

O ciclone Arani ocorreu em março de 2011 no oceano Atlântico Sul e foi classificado inicialmente como depressão subtropical. Ao atingir ventos superiores a 34 nós, passou à categoria de tempestade subtropical, sendo nomeado pela Marinha do Brasil como Arani, que significa tempo furioso em Tupi Guarani. O objetivo deste trabalho foi analisar o ciclone Arani através do Espaço de Fase de Ciclones, construído com dados da reanálise ERA-Interim do European Centre for Medium-Range Weather Forecasts (ECMWF), com 0,7º de resolução espacial, e, também, utilizando campos sinóticos e cortes verticais com os dados da reanálise do Climate Forecast System Reanalisys (CFSR), com 0,5º de resolução. Através dos diagramas de fase foi possível identificar a estrutura subtropical do ciclone Arani e o indício de uma transição de fase extratropical no final de seu ciclo de vida. Os resultados indicaram, também, que a qualidade dos diagramas de fase para ciclones com fraco núcleo quente e pequenas dimensões depende de modelos atmosféricos adequados e, por isso, os valores obtidos devem ser analisados com cautela quando se trata do uso de modelos globais. Neste caso, o estudo qualitativo dos diagramas se mostrou mais útil do que a análise puramente quantitativa. Apesar de discordar da informação de uma transição de fase extratropical no final do ciclo de vida do ciclone Arani, contida nos diagramas de fase empregados no estudo, a análise dos campos e dos perfis sinóticos contribuiu para o entendimento do desenvolvimento do ciclone e para a interpretação dos próprios diagramas de fase.

Palavras-Chave: Ciclone Subtropical Arani; Atlântico Sul; Espaço de fase de ciclone


INTRODUÇÃO

Os ciclones passam grande parte de seu ciclo de vida sobre os oceanos. Os centros operacionais de previsão do tempo, voltados para as áreas marítimas, devem dar especial atenção a estes fenômenos. Os prejuízos vão desde a destruição das orlas devido a ressacas, até o não funcionamento dos portos e a impossibilidade de tráfego marítimo devido às condições adversas do tempo e do mar, sem mencionar as possíveis perdas irreparáveis de vidas humanas.

Por aproximadamente um século, os diferentes tipos de ciclones foram estudados separadamente e foram classificados de acordo com a sua área de formação em dois tipos básicos: extratropicais e tropicais (Hart; Evans, 2001). Porém, o avanço na forma de obtenção de dados, o aumento da quantidade e da qualidade de observações atmosféricas sobre áreas oceânicas através de satélites e o desenvolvimento de ferramentas em modelagem numérica permitiram observar que os ciclones extratropicais podem apresentar aspectos tropicais, e vice-versa. Desta forma, um mesmo ciclone pode apresentar diferentes fases durante o seu ciclo de vida, com diferentes características estruturais e térmicas.

Após a ocorrência atípica do ciclone Catarina, em 2004, instituições ligadas à meteorologia, universidades e os centros de previsão do tempo do Brasil vêm dando destaque ao estudo e previsão do impacto de ciclones sobre áreas costeiras. O Encontro Internacional de Ciclones do Atlântico Sul, que ocorreu em maio de 2008, foi mais um passo da comunidade científica brasileira em busca do aprimoramento do conhecimento sobre os ciclones. O evento, que foi sediado na cidade do Rio de Janeiro, reuniu pesquisadores e meteorologistas previsores de vários países, além de trazer novos conhecimentos e ferramentas de previsão de ciclones tropicais, extratropicais, subtropicais e híbridos. Entre essas novas ferramentas, o conceito de Espaço de Fase de Ciclones foi apresentado de maneira detalhada.

Hart (2003) propôs o chamado Espaço de Fase de Ciclones (em inglês conhecido como Cyclone Phase Space – CPS), que permite avaliar a estrutura térmica dos ciclones a partir de indicadores objetivos. Esses indicadores são os parâmetros B (simetria térmica do ciclone), -VTL (vento térmico em baixos níveis da atmosfera) e -VTU (vento térmico em altos níveis da atmosfera), que definem a fase do ciclone. Quando o ciclone passa de uma fase a outra, diz-se que houve uma transição de fase do ciclone, que pode ser completa ou parcial, dependendo se, após a transição, o ciclone assume completamente ou não as características extratropicais ou tropicais.

A fase que o ciclone assume durante o seu ciclo de vida implica em variações de sua intensidade, tamanho, incerteza de previsão, e, consequentemente, na ameaça que representa para a população costeira e para os navegantes. Portanto, para que haja o aumento da previsibilidade da trajetória e da intensidade dos ciclones, o conhecimento das diferentes características térmicas que eles podem apresentar constitui uma importante ferramenta prognóstica.

Este artigo apresenta as características térmicas do ciclone Arani, fazendo a correspondência entre as suas mudanças estruturais, de intensidade e a sua evolução nos diagramas de fase de ciclones.

MATERIAL E MÉTODOS

Foram utilizadas informações do Climate Forecast System Reanalisys (CFSR), imagens do satélite GOES-12, cartas sinóticas elaboradas pelo Serviço Meteorológico Marinho (SMM), operado pelo Centro de Hidrografia da Marinha (CHM), pelo Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC/INPE), dados estimados por sensores em satélites (ASCAT e TRMM), e diagramas de fase de ciclone com dados de reanálise ERA-Interim gerados pela Universidade do Estado da Flórida (FSU), no período de formação e desenvolvimento do Ciclone Arani, entre 13 e 19 de março de 2011.

Climate Forecast System Reanalisys (CFSR)

O CFSR é um banco de informações reanalisadas em alta resolução. A segunda versão foi implementada em 2010, sendo referente ao período de janeiro de 1979 até os dias atuais (Saha et al., 2010). Os dados estão disponíveis em 64 níveis de pressão, que vão desde a superfície até 0,26 hPa, com espaçamento horizontal de 0,5° e frequência de 1 hora.

Os dados de reanálise foram gerados através do modelo Global Forecast System (GFS) e, como modelo oceânico, a quarta versão do Modular Ocean Model (MOM4), portanto com acoplamento ar-mar.

Neste trabalho foram utilizadas as informações disponíveis em 4 horários sinóticos (00Z, 06Z, 12Z e 18Z) com 28 níveis de pressão, da superfície a 100 hPa (superfície, 1000, 975, 950, 925, 900, 875, 850, 825, 800, 775, 750, 700, 650, 600, 550, 500, 450, 400, 350, 300, 250, 225, 200, 175, 150, 125 e 100 hPa), além dos dados de vento a 10 metros. Os campos e perfis dos dados de reanálise foram obtidos através do Grid Analysis and Display System (GrADS) (Doty; Kinter, 1995), na versão 2.0.a9 para Linux.

Para a análise sinótica do ciclone, foram utilizados os campos de geopotencial em 500 hPa e do jato em 250 hPa, em sobreposição à pressão à superfície, com o intuito de verificar possíveis contribuições da circulação em médios e altos níveis da atmosfera sobre o ciclone; pressão à superfície com a espessura da camada entre 900 hPa e 600 hPa, para se identificar a natureza térmica das massas de ar que interagiram com o ciclone; e vento a 10 metros para identificar as variações de intensidade do ciclone à superfície durante a sua evolução. Os cortes verticais foram feitos sobre a latitude onde encontravam-se os mínimos de pressão do ciclone à superfície, em cada instante, no domínio de longitudes dentro do qual ele se desenvolveu sobre o Oceano Atlântico Sul (050W-010W). Já os perfis da perturbação do geopotencial foram obtidos dentro de um raio de 500 km em torno da posição do centro do ciclone à superfície, de acordo com a metodologia de Hart (2003).

Imagens e estimativas de satélite

As imagens do satélite GOES-12, no canal infravermelho, foram obtidas mediante solicitação junto à Divisão de Satélites Ambientais (DSA), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

Foram utilizados outros produtos derivados de satélite, como a estimativa de Temperaturas da Superfície do Mar (TSM) e ventos sobre superfícies oceânicas. Os dados de TSM foram obtidos através do sensor de microondas TRMM Microwave Imager (TMI), a bordo do satélite Tropical Rainfall Measuring Mission (TRMM), e estão disponíveis na página do Remote Sensing Systems (RSS) na internet (http://images.remss.com/tmi/tmi_data_daily.html). Os dados de vento a 10 metros foram obtidos pelo escaterômetro de vento marítimo ASCAT a bordo do satélite EUMETSAT METOP (https://manati.star.nesdis.noaa.gov/datasets/ASCATData.php).

Cartas sinóticas

Foram utilizadas cartas sinóticas (análise subjetiva) confeccionadas pelo SMM, operado pelo CHM (https://www.marinha.mil.br/chm/dados-do-smm-cartas-sinoticas/cartas-sinoticas), e pelo CPTEC/INPE (http://img0.cptec.inpe.br/~rgptimg/Produtos-Pagina/Carta-Sinotica/Analise/Superficie/).

Espaço de fase de ciclone

É um espaço tridimensional definido por três parâmetros que caracterizam o ciclone: “B”, que se refere à simetria térmica do ciclone, indicando se o ciclone é frontal ou não-frontal, e “-VTL” e “-VTU”, que se referem à sua estrutura térmica e correspondem ao vento térmico entre 900 hPa e 600 hPa, e entre 600 hPa e 300 hPa, respectivamente. Esses últimos parâmetros indicam a natureza térmica do ciclone, ou seja, se possuem núcleo frio ou núcleo quente nas respectivas camadas atmosféricas consideradas. Os três parâmetros definem os eixos x, y e z deste espaço de fase.

Os diagramas de fase analisados foram elaborados pela FSU com os dados de reanálise do projeto ERA-Interim do European Centre for Medium-Range Weather Forecasts (ECMWF), com resolução horizontal de 0,7º.

Parâmetro B: simetria térmica do ciclone

Considerando que a camada atmosférica possui uma determinada temperatura média, conclui-se que a espessura da camada entre dois níveis verticais de pressão é diretamente proporcional a esta temperatura. Portanto, onde há advecção fria em determinada camada da atmosfera há a tendência de redução da espessura desta camada, enquanto onde há advecção quente, o fluido tende a se expandir e a camada tem sua espessura aumentada. Desta maneira, uma superfície isobárica que passe sobre um ciclone extratropical apresentará desníveis assimétricos de altura geopotencial. Já os ciclones tropicais, que se formam em áreas de grande homogeneidade térmica, realizam pouca ou nenhuma advecção de temperatura, resultando em uma grande simetria térmica e, consequentemente, em uma forte simetria no campo de altura geopotencial.

O parâmetro B foi proposto para quantificar o grau de simetria do ciclone e, portanto, a sua natureza frontal ou não-frontal. Ele mede o gradiente de espessura média da camada entre 900 hPa e 600 hPa (que é diretamente proporcional ao gradiente de temperatura média da camada), perpendicular ao movimento do ciclone, dentro de um raio de 500 km a partir do centro do ciclone em superfície (Equação 2.1).

Equação 2.1 F

Em que:

h= +1 para o HN e h= -1 para o HS;

Z600hPa é a altura geopotencial no nível de 600 hPa;

Z900hPa é a altura geopotencial no nível de 900 hPa;

e os índices “D” e “E” correspondem aos lados direito e esquerdo do ciclone, respectivamente, tendo como referência a linha divisória estabelecida pelo seu vetor deslocamento.

Um ciclone tropical maduro tem um valor de B aproximadamente zero, enquanto um ciclone extratropical em desenvolvimento tem um grande valor positivo de B. Os últimos estágios de um ciclone extratropical também apresentam pequenos valores de B, já que após a oclusão ocorre a elevação do seu setor quente e mistura das massas de ar, resultando em um centro de baixa pressão homogêneo e frio. Hart (2003) estabeleceu o critério B = 10 metros para distinguir os ciclones simétricos dos assimétricos e este critério será usado aqui.

Parâmetros -VTL e -VTU: vento térmico e termodinâmica do núcleo

A natureza térmica do núcleo do ciclone, quente ou frio, pode ser conhecida através da análise do vento térmico em toda extensão vertical do centro do ciclone. A relação vetorial do vento térmico é indicada na Equação 2.2:

Equação 2.2 F

Em que:

-VT é o vento térmico; g a aceleração da gravidade;

f o parâmetro de Coriolis;

∇ZT é o gradiente horizontal da espessura da camada atmosférica.

Considerando que todos os ciclones podem apresentar núcleos quente e frio simultaneamente, dependendo da camada atmosférica examinada (Hirschberg; Fritsch, 1993), foi criado o parâmetro (-VTL) que analisa uma camada representativa dos baixos níveis da troposfera (900 hPa a 600 hPa) e o parâmetro (-VTU) que analisa uma camada representativa dos altos níveis da troposfera (600 hPa a 300 hPa). A camada abaixo de 900 hPa não é incluída para impedir a extrapolação abaixo do solo ou dentro da camada limite atmosférica, que nem sempre é representativa da estrutura do ciclone na atmosfera livre. A atmosfera acima de 300 hPa é excluída para prevenir a influência da fase estratosférica, que é frequentemente oposta à fase troposférica.

Valores positivos de -VT indicam uma camada de núcleo quente, enquanto valores negativos indicam uma camada de núcleo frio. Para um ciclone tropical de núcleo quente, -VTL e -VTU são necessariamente positivos e -VTL tem maior magnitude. Inversamente, para um ciclone extratropical de núcleo frio, -VTL e -VTU são necessariamente negativos e -VTU tem maior magnitude. Em ciclones híbridos, ciclones extratropicais com aprisionamento quente (warm seclusion) ou ciclones subtropicais, -VTL e -VTU apresentam sinais opostos.

Os núcleos quente e frio de um ciclone relacionam-se diretamente com a sua estrutura vertical da perturbação de altura geopotencial (amplitude). A presença de núcleo frio indica uma onda ou estrutura de ciclone com maior amplitude no topo da camada que na base, com o eixo do cavado inclinando-se para oeste. Inversamente, o núcleo quente apresenta uma perturbação de altura geopotencial que é maior na base do que no topo da camada, com o eixo do cavado aproximadamente vertical (empilhado).

Vale ressaltar que apesar de Gozzo et al. (2014) ter utilizado diferentes limiares tanto para o parâmetro B quanto para os ventos térmicos em seus estudos sobre ciclones subtropicais sobre o Atlântico Sul, neste trabalho foi utilizado exatamente o critério de Hart (2003) para a análise do ciclo de vida do Arani.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Descrição sinótica, dinâmica, e aspectos observacionais

No dia 14 de março de 2011, áreas de baixa pressão se aprofundaram nas proximidades do litoral dos estados brasileiros do Rio de Janeiro e Espírito Santo, e deram origem a um ciclone que se desenvolveu sobre o Oceano Atlântico Sul. A partir do dia 15, o ciclone foi classificado pela Marinha do Brasil como tempestade subtropical “Arani”, de acordo com uma lista de nomes que consta nas Normas da Autoridade Marítima para as Atividades de Meteorologia Marítima (NORMAM-19), e que foi estabelecida para nomear ciclones tropicais e subtropicais que se formem sobre a área marítima de responsabilidade brasileira, conhecida como METAREA V.

De acordo com os critérios estabelecidos por Jarvinen et al. (1984), o ciclone subtropical Arani foi classificado como depressão subtropical desde sua origem (ventos inferiores a 34 nós), junto à costa, até sua intensificação e elevação de categoria (Figura 1A e 1B). No dia 15, o ciclone foi classificado como uma tempestade subtropical, pois os ventos superaram os 34 nós (Figura 1C e 1D).

Figura 1. Imagens do satélite GOES-12 no canal infravermelho. Em destaque o ciclone Arani (A) às 140600Z, (C) às 150600Z e (E) às 161200Z. Estimativas da velocidade do vento em superfície através do escaterômetro ASCAT (B) às 140600Z, (D) às 150600Z e (E) 161000Z. A letra B, em vermelho, indica a posição aproximada do mínimo de pressão associada ao ciclone. Os ventos máximos observados em (B) não ultrapassam 30 nós, em (D) entre 30 a 40 nós e em (F) entre 40 e 45 nós a norte e nordeste do centro do ciclone. [Fonte: NOAA].

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Apesar do Oceano Atlântico não ser monitorado oficialmente pelo serviço meteorológico americano, o ciclone Arani foi classificado pelo National Hurricane Center (NHC) como o caso INVEST 90Q. Vale destacar que um caso INVEST significa a existência de uma área que merece ser investigada devido ao seu potencial de formação de ciclone tropical. A partir dessa classificação, o NHC passou a disponibilizar saídas do modelo GFDL (Figura 2 A-B), que é mais adequado para o prognóstico de desenvolvimentos tropicais e utilizado na previsão de furacões sobre o Oceano Atlântico Norte. Também foi indicado um mínimo de Pressão ao Nível Médio do Mar (PNMM) de 994 hPa entre os dias 14 e 16 (não mostrado).

O SMM representou o ciclone em suas cartas sinóticas como tempestade subtropical, com pressão mínima de 998 hPa, no dia 15, às 1200Z. A partir do dia 17, o SMM indicou a transição extratropical do ciclone, evidenciada pela presença de uma frente fria em sua carta sinótica (Figura 2 C-D). O Grupo de Previsão do Tempo (GPT) do CPTEC/INPE também indicou a transição de fase do ciclone a partir do dia 17, traçando uma frente fria na carta de 180000Z (Figura 3).

Figura 2. Campo de pressão à superfície e vento a 35 m do modelo GFDL com grades de 1/3° e 1/6°, sendo a última centrada no ciclone. Análise de 14 de março de 2011 às 18Z em (A) e prognóstico para 16 de março de 2011 às 00Z em (B) (Fonte: NHC). E cartas sinóticas do SMM/Marinha do Brasil mostrando a Tempestade Subtropical Arani em 151200Z em (C) e a posterior frontogênese em 171200Z em (D). [Fonte: Centro de Hidrografia da Marinha/MB]

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Figura 3. Cartas sinóticas do CPTEC/INPE. Em destaque o ciclone subtropical Arani, durante os dias 16 e 17 (A e B), e o posterior aparecimento de uma frente fria no ciclone (C e D). [Fonte: CPTEC/INPE]

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As elevadas TSM observadas deram suporte ao desenvolvimento da intensa atividade convectiva e ao aprofundamento do ciclone. As temperaturas máximas estimadas por satélite na área de seu desenvolvimento (Figura 4) estiveram próximas a 30ºC, o que é favorável à ciclogênese tropical.

Figura 4. Estimativa de TSM média dos dias 15, 16 e 17 de março, através do sensor de microondas a bordo do satélite TRMM.

F

[Fonte: Remote Sensing Systems (RSS)].

Pela reanálise CFSR, o ciclone teve valor mínimo de pressão estimado em 1004 hPa (Figura 5A, 5D, 5G). Ele não esteve associado a gradientes térmicos significativos em baixos níveis e se desenvolveu em uma massa de ar quente e homogênea, sem contrastes de temperatura evidentes na camada entre 900 hPa e 600 hPa (Figura 5C, 5F, 5I), o que também pode ser deduzido pela ausência de um jato em 250 hPa nas proximidades do ciclone (Figura 5B, 5E, 5H). Um cavado em médios níveis esteve em fase com o ciclone em superfície, denotando característica barotrópica (Figura 5A, 5D, 5G).

Ao contrário do ciclone Catarina (Gan, 2009), ocorrido em março de 2004, o ciclone Arani apresentou movimento contínuo para leste/sudeste e a sua atividade convectiva não se organizou em forma de bandas espiraladas, típica dos ciclones tropicais. A convecção mais profunda se manteve ligeiramente afastada do centro do ciclone, nos seus setores leste e nordeste. A banda de nebulosidade e os ventos máximos observados afastados do centro do ciclone são características coerentes com aquelas previstas por Herbert; Poteat (1975) para os ciclones subtropicais.

A partir do dia 16, uma frente fria que se deslocava mais ao sul, no sentido sudoeste-nordeste, se aproximou do ciclone Arani. Houve o acoplamento do cavado em 500 hPa associado ao ciclone Arani e o cavado baroclínico de latitudes médias que dava suporte dinâmico ao sistema frontal (Figura 5A, 5D, 5G).

Figura 5. Pressão ao Nível Médio do Mar (contornos em preto) e: I) altura geopotencial em 500 hPa (contornos coloridos); II) Ventos (setas) e Jatos em 250 hPa (em cores) e III) espessura da camada entre 900 hPa e 600 hPa (em cores), segundo reanálise CFSR.

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A reanálise CFSR aponta que o ciclone Arani teve vento máximo sustentado entre 30 e 35 nós (Figura 6), que são valores subestimados quando confrontados com as estimativas de satélite (Figura 1). É possível atribuir essa diferença à representação subestimada, pelo CFSR, das pressões do ciclone e de seu gradiente de pressão.

Figura 6. Campos de vento a 10 metros a partir da reanálise CFSR.

F

Análise dos diagramas de fase

Os diagramas de fase do ciclone Arani podem ser verificados na Figura 7, onde A e B relacionam a simetria térmica (parâmetro B) e o vento térmico (parâmetro -VTL) entre 900 e 600 hPa, enquanto C e D apresentam o VT em toda a extensão vertical, relacionando o VT entre 900 hPa e 600 hPa, e entre 600 hPa e 300 hPa (parâmetros -VTL e -VTU). Os diagramas disponibilizados pela FSU possuem intervalos constantes para os eixos dos diagramas, independente da intensidade do ciclone analisado, o que pode acarretar dificuldade na interpretação dos diagramas de ciclones menos intensos. Para contornar essa limitação, as figuras B e D correspondem aos mesmos valores dos parâmetros dos gráficos originais das figuras A e C, porém, com uma mudança na escala dos gráficos para que haja maior compreensão da evolução do ciclone.

Na Figura 7 (A e B) é possível notar que, entre os dias 14 e 15, o ciclone Arani apresentava forte simetria térmica (B aproximadamente zero) e núcleo quente entre 900 hPa e 600 hPa (-VTL em torno de +50), ocupando o espaço no diagrama de fase típico de ciclones subtropicais. Ao longo do dia 15, houve um fortalecimento do núcleo quente em baixos níveis, coincidindo com o aumento da sua atividade convectiva (Figura 1) e com a elevação da categoria do ciclone de depressão para tempestade subtropical, devido à intensificação dos ventos. Durante o dia 16, houve redução da simetria térmica do ciclone e redução da intensidade do núcleo quente. No dia 17, os diagramas apontam para uma transição do ciclone de núcleo quente para núcleo frio em baixos níveis e o aumento da assimetria térmica, adquirindo as características de um fraco ciclone extratropical.

A Figura 7 (C e D) evidencia que o ciclone Arani manteve um fraco núcleo quente em baixos níveis e um fraco núcleo frio em altos níveis, desde o seu aparecimento até o momento em que realizou transição de fase extratropical no dia 17. Isso corrobora com Hart (2003), que afirma que os ciclones subtropicais têm uma fraca estrutura de núcleo quente na baixa troposfera, resultante da falta de convecção sustentada próximo do centro do ciclone.

Figura 7. Diagramas de Fase relacionando os parâmetros B e -VTL (A) e -VTL e -VTU (C) utilizando a reanálise ERA-Interim (0,7º). (B) e (D) indicam diagramas de fase correspondentes aos originais (A e C), com alteração da escala. [Fonte: A e C Florida State University]

F

É importante enfatizar que apesar dos resultados do GFS não terem apresentado evidências da transição (Figura 9), a reanálise com dados do ERA-Interim (ECMWF) a apresentou por meio dos diagramas de fase (Figura 7). Havia um sistema frontal mais ao sul e, quando se analisa as imagens de satélite e os campos de vento, há fortes evidências de que houve uma interação entre a massa de ar frio que estava na retaguarda da frente e o ciclone Arani, no momento em que a frente chega muito próxima a ele. Pode ser que a intrusão de ar frio tenha sido pequena a ponto de não alterar o sinal positivo do vento térmico em baixos níveis, o que fica evidente nos cortes verticais da Figura 9, onde o ciclone mantém os maiores valores das anomalias de geopotencial próximo à superfície. Porém, pode ter ocorrido um aumento da assimetria do ciclone, o que fica evidente pelos diagramas de fase (B entre 15 e 25 metros) e pela intensificação dos ventos no momento da provável transição de fase, quando aumenta a energia potencial do ciclone devido ao aumento da assimetria, tendo consequentemente uma resposta na intensidade do vento.

Elsberry (1995) mostrou que a intensidade do vento aumenta significativamente durante e imediatamente após o processo de transição extratropical. Isso ocorre, conforme percebido por Pálmen (1958), como resultado do incremento na energia potencial disponível da atmosfera devido ao aumento da assimetria do ciclone. No caso do ciclone Arani, durante e após a transição extratropical apontada pelos diagramas de fase, a partir do dia 17 às 12Z (Figura 7), ocorreu a intensificação dos ventos a 10 metros (Figura 8). Considerando que nos dias 16 e 17 o núcleo quente do sistema encontrava-se em enfraquecimento e a intensidade dos ventos em declínio, a nova intensificação do vento na porção sudoeste do ciclone ocorreu como consequência do aumento da energia potencial do sistema, conforme indicado pelo parâmetro de simetria do diagrama de fase.

Figura 8. Pressão ao Nível Médio do Mar (PNMM) e vento a 10 metros. As setas azuis destacam a área onde ocorreu intensificação dos ventos.

F

A estrutura de núcleo quente adquirida pelo ciclone Arani pode ser identificada pelo corte vertical de anomalia de geopotencial (Figura 9). Nota-se que o ciclone Arani possuía um núcleo quente restrito aos baixos níveis da troposfera: as maiores anomalias negativas de geopotencial se encontravam na base do ciclone e o eixo do cavado encontrava-se praticamente na vertical. Segundo os dados de reanálise, o padrão de núcleo quente em baixos níveis e de núcleo frio em altos níveis se manteve durante todo o seu ciclo de vida, o que pode ser verificado pelos valores positivos de -VTL e negativos -VTU nos perfis de perturbação do geopotencial. Os valores de -VTL diminuíram com o tempo, mostrando uma tendência de enfraquecimento do núcleo quente, porém, não apresenta a mudança do sinal que deveria ocorrer em uma transição extratropical.

Figura 9. Anomalia zonal de geopotencial e perfil da perturbação do geopotencial (∆Z = Zmax - Zmin) em um raio de 500 km em torno do ciclone, segundo as reanálises CFSR. Destacados em vermelho o eixo da anomalia de geopotencial e as camadas atmosféricas utilizadas para a análise da fase do ciclone (900 hPa - 600 hPa e 600 hPa - 300 hPa).

F F

Os perfis verticais (Figura 9) não mostram o aparecimento de um núcleo frio em baixos níveis, contrariando as informações contidas nos diagramas de fase. Porém, a possível ocorrência da transição extratropical mostrada pelos diagramas de fase é coerente com uma interação do ciclone Arani com a massa de ar frio que se deslocava na retaguarda da frente fria mais ao sul, no momento que os dois sistemas meteorológicos se aproximam no dia 17.

Também não se exclui a possibilidade do ciclone não ter realizado uma transição extratropical completa, aumentando apenas a sua assimetria, sem a mudança do sinal do vento térmico em baixos níveis, como mostra os cortes verticais da anomalia de geopotencial do ciclone. Neste caso, o Arani teria assumido uma fase híbrida no final de seu ciclo de vida, tornando-se um ciclone assimétrico com núcleo quente em baixos níveis, e não um ciclone extratropical com núcleo frio profundo e sem uma frente fria associada.

CONCLUSÕES

O ciclone Arani foi classificado como ciclone subtropical desde a sua origem até o dia 17, sendo uma depressão subtropical a partir do dia 14 até o dia 15, quando atinge a intensidade de tempestade subtropical. A partir do dia 17, o ciclone realizou transição extratropical (completa ou parcial, dependendo da fonte de dados utilizada – ERA-Interim ou CFSR), em cuja fase se manteve até sua dissipação. Ressalta-se que essa transição de fase pode ter sido parcial (apenas o aumento da assimetria, mantendo o núcleo quente), o que o classificaria como híbrido após a fase subtropical, ou pode ter sido total (tornando-se assimétrico e de núcleo frio), conforme os resultados do diagrama.

O ciclone apresentou características subtropicais facilmente identificadas nos diagramas de fase, contribuindo para o entendimento de sua cobertura de nuvens, intensidade e trajetória. De acordo com os diagramas, após a sua intensificação inicial, o núcleo quente perdeu intensidade continuamente e sofreu uma transição extratropical ao ser influenciado por um sistema frontal que se deslocava ao sul do ciclone.

Apesar da discordância das reanálises ERA-Interim e CFSR, quanto à ocorrência da transição de fase extratropical no final de seu ciclo de vida, é consenso entre os diagramas e os dados de reanálise que o ciclone Arani não realizou uma transição tropical completa. Para atingir a categoria de uma tempestade tropical ou um furacão, o ciclone deveria apresentar um núcleo quente profundo. O seu desenvolvimento tropical ficou restrito pelas condições ambientes, como, por exemplo, o cisalhamento vertical do vento e a aproximação de uma onda baroclínica de latitudes médias.

Conforme o esperado para os casos de transição extratropical, ocorreu uma nova intensificação dos ventos durante o período de declínio antes da transição de fase do ciclone Arani. Como foi visto anteriormente, outros pesquisadores já haviam concluído sobre a intensificação dos ciclones com características tropicais durante e após a transição extratropical, evidenciando que os diagramas de fase são importantes ferramentas na previsão das mudanças de intensidade dos ciclones.

Para se detectar as variações estruturais e térmicas de ciclones com características tropicais e com menores dimensões espaciais e intensidades, como o ciclone Arani, é necessário utilizar modelos adequados e ajustar a escala dos diagramas para que representem bem os valores típicos desses sistemas, que normalmente são menores em módulo. Os diagramas de fase de ciclones com fraco núcleo quente, obtidos a partir de resultados de modelos globais, devem ser analisados com cautela e o seu estudo qualitativo é mais importante que o quantitativo.

Os diagramas de fase podem ser valiosa contribuição na previsão de ciclones, sobretudo no Oceano Atlântico Sul, onde a escassez de observações não permite o acompanhamento em tempo real suas mudanças de estrutura e de intensidade.

AGRADECIMENTOS

Ao Dr. Robert Hart da Universidade da Flórida, que sempre se mostrou acessível e disposto a ajudar, desde o Encontro Internacional sobre Ciclones do Atlântico Sul, ocorrido no Rio de Janeiro no ano de 2008, seja fornecendo os diagramas aqui analisados, seja dando sua contribuição na análise das transições de fase de ciclones.


REFERÊNCIAS

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Recebido: 14 jul. 2020

Aprovado: 02 nov. 2020

DOI: 10.20985/1980-5160.2020.v15n3.1663

Como citar: Palmeira, A.C.; Mathias, R.S.B. (2020). Estudo do ciclo de vida do ciclone subtropical Arani ocorrido no Atlântico Sul em março de 2011 através das reanálises ERA-Interim e CFSR. Revista S&G 15, 3, 235-249. https://revistasg.emnuvens.com.br/sg/article/view/1663